domingo, 25 de abril de 2010

Bom dia, Liberdade!

Olhavam para o sol e viam-no nascer todas as manhãs. Viam como a luz incidia sobre as coisas e as iluminava e pensavam, sempre pensaram, que estava tudo bem, que estavam a ver. Primaveras e Verões sucederam-se com o sol a ser mais do que rei. A ser pai, mãe e alimento, a ser conforto para os pés descalços, a ser o único abraço e o único mimo de crianças muito tristes, que não sabiam ainda que eram tristes, não sabiam ainda sorrir. Crianças que confundiam o gesto de um mimo com o de um bofetão e que se afastavam, que andavam sempre a afastar-se, andavam ao lado umas das outras com medo de se tocarem, andavam ao lado de si mesmas, sem se olharem. Sabiam que havia luz e que isso era bom porque não tropeçavam nas pedras do caminho para a escola, e não sabiam nada sobre essas pedras, não sabiam nada sobre esses pés.

Era Primavera, a seguir vinha o Verão, assim lhes ensinara o mestre-escola. Os dias iam crescendo, enchiam-se de luz e calor e tudo parecia sarar: as chagas dos pés fechavam, a pele enrijecia e ficava mais fresca, a água fria das fontes sabia melhor nos lábios e no resto do corpo, os cabelos andavam mais asseados, as marcas da palmatória cicatrizavam mais rapidamente. Todos pareciam felizes e, caso alguém tivesse a ideia de os questionar sobre isso, todos diriam que sim, que estavam contentes. Nenhum deles teria dúvidas em distinguir o Verão do Inverno, porque todos passavam pelo Verão e pelo Inverno, porque lhes ensinaram as estações do ano e, ao passarem por elas, todos as reconheciam, como reconheceriam a alegria e a liberdade, se lhes tivessem ensinado a alegria e a liberdade. Porque essas são coisas que obedecem a um percurso e há que fazê-lo par o conhecer, para o reconhecer.

Hoje é Primavera e o Verão não tarda. Sei disto, porque alguém me ensinou esses nomes e eu repito-os, tenho-os repetido toda a vida. Tenho repetido as estações e os seus nomes e não me canso. Tenho repetido a palavra amor, tenho conjugado verbos com pessoas, tenho repetido a palavra liberdade. E não me canso. Não me canso de repetir essas palavras e de as percorrer em voltas e rumos diversos: sei que a luz que incide sobre elas no Verão é a mesma que incidirá no Inverno, porque essa luz emana de dentro de mim e, quando sai para iluminar as coisas mais ou menos sensíveis do mundo, sai para me libertar.

Sei da importância da luz tanto e tão bem como eles (os que não distinguiam a luz do sol da luz de um olhar feliz) sabiam. E por isso, não me sai esta ideia da cabeça: se não fossemos um país de tanto sol, se os Invernos fossem ainda mais rigorosos e mais longos, e o sol não aparecesse tanto para encandear olhares e afagar as almas em revolta… Não seríamos livres há mais tempo?

Não queria fazer isto, sei que é um álibi tonto, mas posso (só hoje!) imputar as culpas ao sol? Amanhã, ele brilhará outra vez, para me ensinar coisas abertas sobre a liberdade, para me ensinar que a culpa não existe. E, ao acumular aprendizagens debaixo desta luz quente, sei que nunca me hei-de cansar de ter luz, nunca me hei-de cansar de ser livre e de despertar diariamente neste diálogo:

- Bom dia, gente livre!

- Bom dia, Liberdade!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Breve nota sobre os dias

Abria os olhos e via que lhe aconteciam coisas extraordinárias por esses dias. Via que era Primavera e que o sol brilhava e afagava as árvores e as flores, tanto nos canteiros de uma casa feliz, como nas avenidas de uma cidade cinzenta. Via pessoas a passarem ao seu lado na rua e sabia que tanto iam alegres como tristes, tanto caminhavam sabendo que caminhavam, como levitavam, aparentando simplesmente caminhar. Via gente que passava e gente que olhava. Gente que parava, por vezes, fincando as mãos em ombros ou noutras mãos. Lágrimas nas mãos de amantes que se despediam, ou o sorriso do homem que plastificava documentos, no cimo de uma avenida.

Tudo isto lhe parecia extraordinário.

Via que o sorriso do funcionário das finanças estava a crédito no dentista e que a colega dele há muito que esqueceu a cor do seu cabelo. Via os ombros resignados dos funcionários noutra repartição pública, e sabia que o tempo que ia ali gastar tinha que lhe chegar, e, de facto, verificava que quando esse tempo acabava lhe tinha chegado. Via que o tempo lhe era sempre útil. E já não parecia que o gastava, como ao dinheiro. Via que essa ligação do tempo ao dinheiro é responsável pelo declínio das coisas humanas. Pelo menos das coisas humanas que lhe interessam a ela, e

Fechava os olhos e via que lhe aconteciam coisas extraordinárias nesses dias. Via que caminhava em direcção ao centro da vida, tanto pelo ritmo cardíaco acelerado e pela respiração apressada, como pela suavidade desses ritmos. Nesses dias, abrir e fechar os olhos na constância de um sorriso parecia-lhe a única coisa extraordinária de toda a sua existência. E era-o, de facto: não tinha que se sentar e escrever para pensar sobre isso. Não tinha que correr para acompanhar o mais veloz dos pensamentos. Não tinha que sonhar para ter o que queria. Não tinha que nada: Pensar é estar aqui, correr é estar aqui, sonhar é estar aqui. Via isto, enquanto existia. E existir, por esses dias, era uma coisa extraordinária.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Domingo de Páscoa


Regresso, hoje, à minha casa-infância. Faço-o sempre que a vida me atropela a exactidão dos dias e dos sentidos. Sempre que me perco na errância das coisas que não são minhas. Sempre que o calendário interna, na Primavera, a palavra domingo, a palavra Páscoa.

É domingo na minha memória. Um intenso domingo de Páscoa da minha infância.

Visto-me de branco e ponho flores no cabelo. A minha mãe sorri mais do que nos outros dias. Os móveis da casa envaidecem-se com naperons e doces. O meu pai alinha as gravatas sobre a cama e escolhe sempre a mesma. A minha mãe continua a sorrir. O senhor abade mostra-me o significado da palavra “elegância”, sentado na burra do Zé da Mata (que afinal era uma linda égua). O senhor abade ensina-me o significado da palavra “beleza” – não conheço ninguém tão velho como ele, ninguém que sorria tanto como ele (nem a minha mãe num domingo de Páscoa), ninguém que me segure o queixo com mãos tão delicadas, ninguém que ponha no rosto cansado um tamanho lençol de beleza. O senhor abade cheira a hóstias. Todas as casas cheiram a hóstias no domingo de Páscoa, dizem-me que é a naftalina, mas eu não acredito. Para mim, todas as casas cheiram a hóstias, no domingo de Páscoa e há algumas que cheiram a hóstias o ano todo. Há flores amarelas nos valados e outras brancas, que eram para ser lírios, mas não cresceram tudo. As flores cheiram a flores pequeninas, quando se misturam, à entrada das casas, com mostrastes. As crianças correm a encher as casas dos vizinhos, os rebuçados pulam-lhes nas algibeiras e intumescem-lhes as bocas, onde cai a cruz, lavada em perfume de rosas.

Se forem dez horas já me dói a barriga, mas não digo nada. Pelas onze horas, a minha avó percebe. Já posso chorar devagar. As mãos da minha avó hão-de cair-me sobre o ventre inchado e desenhar movimentos circulares, que aliviam tudo, até a sua voz repreensiva. Pelo meio-dia o fogo estala no ar e eu finjo não ter medo, e, a essa hora exacta, o meu avô arrasta para o rosto o que a memória lhe garante ser um sorriso. O soalho estremece debaixo dos pés irrequietos da pequenada e um dos pratos da baixela nova de há 40 anos, estala pela quadragésima vez, mas não parte.

Estamos todos à mesa da minha infância. A mesa a que regresso sempre. A mesa que nunca abandonei. É domingo de Páscoa na minha memória, a memória que nunca me abandonou e que conserva todos os que amo. Que conserva tudo o que sou.