quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Poema para Adriana

Adriana é um dia de semana.

Grande coisa para se ser, pensam uns

E por que não será a semana toda, perguntam outros

Já que a pões num poema, dá-lhe o tempo todo

Resmunga o Zé a um canto

Eu, que da Adriana devia apenas pensar o nome

Atrevi-me hoje a escrevê-lo

Como se o nome fosse um dia inteiro

E sei que ao ser um dia inteiro

Adriana parece mais do que se for apenas um dia da semana

Que é o que ela é.

E aqui, aqueles que escarneceram da importância de se ser um dia da semana,

(De se ser Adriana

De se ser um dia à escolha, de domingo a sábado

De se ser e de se ter escolha sobre todo um dia)

Já percebem que o seu escarnecer era incompreensão e inveja

Todos menos um

Que não tem nenhum desses alcances

Nem o da incompreensão

Nem o da inveja

De Adriana

O Zé dá-lhe o tempo todo

Eu posso apenas dar-lhe um poema

Que vale o que vale

Mas é inteiro

Como um dia da semana

Como Adriana.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Conto de Natal # par

A menina cujos lábios eram sombras adormeceu.

Passou-se o tempo, no seu sono, e com o tempo, pessoas, lugares onde foram inscritos factos, e corações se estilhaçaram.

“Um dia, acordarei”, pensou, antes da preparação metódica da hibernação. “Acordarei, quando o sol tiver a força de aquecer os corações”

Passou-se o frio, no seu sono, e com o frio, pessoas deram abraços, lugares onde se reuniram e interceptaram estilhaços, promessas foram cumpridas, outras adiadas.

“Um dia, acordarei”, inscreveu no lugar cimeiro da lista prioritária de sonhos. “Acordarei, sobre a memória vazia da dor”.

Passou-se a dor, no seu sono, e com a dor, foram-se as pessoas, os lugares ermos da sua memória, as cicatrizes de outros órgãos vitais, outrora estilhaçados.

“Um dia, acordarei”, trauteou na melodia mais bela da sua infância. “Acordarei ao som da mais bela música jamais imaginada”.

Passou-se a música, no seu sono, e com a música, pessoas calaram, vozes intumesceram lugares desertos, versos com veneno apagaram os seus sonhos…

A menina cujos lábios eram sombras acordou, finalmente, numa noite fria de Inverno, olhos cerrados sobre incompreensão destas palavras:

It takes two to climb the mountain

Only one to make its way down.

A menina cujos lábios eram sombras quis gritar, quis subir a montanha… mas agora, depois de terminado o seu imperioso sono, deu-se conta de que os seus lábios sombra eram o espelho de outros lábios que a impediam de falar, de gritar, de beijar. E ali, na parte mais funda da montanha, percebeu os versos do seu despertar:

It takes two to climb the mountain

Only one to make its way down.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Coisa verde

Íamos todos quantos fossemos juntos, por esses dias. Muníamo-nos de cestos, baldes ou pequenos sacos de plástico, pás, enxadas, ou tudo o que fosse digno de mostrar serviço. Era a operação de maior responsabilidade de toda a composição do presépio, por isso, havia sempre um adulto por perto - normalmente, era o nosso tio mais cool (palavra e conceito que, à altura, desconhecíamos, mas que agora, coisas bem vistas, define o meu tio mais novo, que usava barba ou bigode de abas ao alto, boina camuflada e tinha uma colecção de cassetes com cânticos alentejanos, sendo, por isso, entre sussurros e cochichos de velhos e velhas reaccionários (ou simplesmente ignorantes), o maior comunista das redondezas).

Suponhamos que chovia (porque de todas as memórias que me ocorrem, efectivamente, chovia), e se assim fosse, era sabido que os sacos de plástico seriam cortados ao meio e cada um o enfiava na cabeça, a servir de capa. Ríamo-nos todos do meu tio, porque ele só cobria a cabeça, enquanto nós ficávamos protegidos até meio da perna, mais ou menos. Eventualmente, chegávamos à mata de pinheiros, carvalhos e muitos penedos cobertos de musgo. Corríamos a escolher o maior e começávamos a despi-los, lentamente, de forma a que as largas camadas saíssem o mais amplas e homogéneas possível. A chuva caía e enrugava-nos os dedos miúdos, mas o nosso entusiasmo não diminuía, por causa disso.

As camadas de musgo verde e pesado sobrepunham-se, primeiro nos recipientes mais largos, que o tio Zé carregaria, ficando os torrões mais desfeitos para os nossos recipientes, que eram muito mais pequenos e desinteressantes. No regresso a casa, todos conseguíamos antecipar a qualidade das planícies e montanhas que aquela colheita de musgo iria proporcionar ao presépio desse ano. E ninguém tinha dúvidas que esse seria o melhor de sempre!

Há dias, passava ao largo de um mercado em Braga e reparei numa vendedeira, sentada atrás de uns pequenos recipientes cheios de... uma coisa verde. Como conduzia, perguntei à pessoa que ia ao meu lado que me confirmasse, se aquilo era musgo. O tom inexpressivo com que ela disse: “sim, é”, levou-me a camuflar o meu espanto com a normalidade do diálogo: “ E como o vendem?”; e ela: “ ao quilo”. E eu, que me lembrei do meu tio comunista e do cheiro da terra que o musgo levanta, e da pedra nua que a chuva tornaria mais limpa, e do cheiro dos pinheiros e de como escorregávamos na garvalha (que fora do Minho é caruma, mas com outro cheiro), eu que me lembrei que o meu Natal não é meu: é nosso. Eu, que sei que esta pluralidade vem do fundo do tempo (do meu tempo), estiquei o sorriso de incompreensão ao cúmulo da gargalhada e disse, como se tivesse toda a sabedoria do mundo reunida no peito: “mas… não é assim que se colhe o musgo”.

Não adianta de muito descrever o rosto ignorante da minha amiga, porque no meio do seu silêncio estupefacto, percebia-se, que nunca lhe ocorrera, que o musgo, como todas as coisas que nos tornam felizes, também se colhe. Sinto que lhe devo estas memórias de infância, que é onde se reúne toda a sabedoria do mundo ou onde se aprende a colheita da felicidade.