segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Insónia


 As terras, dizia-me a minha mãe há dias, não andam boas. Ela não fala disso, porque tem vergonha, mas sabe que foram os adubos químicos que há duas ou três décadas começaram a acelerar produções dos outros, que lhe estragaram a terra. A terra precisa de mãos e de suor, a minha mãe sempre soube disso, por muito que a tenham tentado convencer do contrário, e nunca se iludiu: as mãos sempre lhe foram de serventia e o suor que diariamente lhe descia pelo rosto e lhe chegava aos lábios nunca lhe foi doce. Durante toda a minha vida tive a romântica sensação de que os meus pais dormiam pouco, mas sonhavam. Agora dormem seguramente mais, mas sonham menos. Só que isso, penso, faz parte dos ofícios do tempo.
Felizmente para eles e infelizmente para Portugal, os meus pais não são nem um estereótipo nem um arquétipo do povo. O povo nem dorme nem sonha. Anda tão tenso quanto teso, sofre de insónias. Indigna-se torpemente, quando lhe mandam, em frente a um ecrã plano ou em praças cheias; nas redes sociais, vomita vilipêndios contra o neoliberalismo, o socialismo, o comunismo, o fascismo e ismo, ismos, ismos, que se confundem a todos e lhe esmifram o pão e a paciência, mas que lhe dão a ilusão da participação. E numa busca pela clarividência embriagam-se em definições que se hão de fazer em pó, sem que ninguém se dê conta e sem que ninguém seja ouvido. Os fazedores dos ismos (os mesmos que há muito apenas ouvem a voz estatística do povo) lançaram sobre nós adubos químicos: puseram-nos a produzir oratória abundante, formaram livres-pensadores (poucos), eruditos (menos ainda), e batalhões vorazes de verborreicos estrategas que, de tanto se levarem a sério, se convenceram que a vida é um produto dos seus próprios pensamentos e (pior que isso!) fazem o povo acreditar que são eles os paladinos da razão.
Todos sem exceção nos esquecemos disto, que a minha mãe na sua sabedoria telúrica tão bem organiza: a vida é mãos e terra nas mãos com suor ao lado. Para acordar é preciso dormir descansado. E para sonhar.
O povo português nem dorme nem sonha. E eu caminho enredada neste pesadelo, sem verdadeiramente dormir, sem verdadeiramente acordar. Mas a acreditar que sonhar não é apenas o produto de um impercetível transtorno disfémico.