segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Portugal ausente




Olha, Portugal, fiz de ti um poema
Enquanto esperava que chegasses
Que para afrontar estes medos
Inventasses um esquema
Despontaram-me longas unhas nos dedos
E com elas esventrei palavras
Guardei-te numa espécie de poema.

Escolhi a pátria triste do meu pai
Para te guardar o P
Escolhi uma oração solene
Que te redimisse d’ ódio
Para te guardar o O
Escolhi rios, riachos e um rumor que corre
Para te guardar o R
Escolhi o pão que se divide com um amigo
E um imenso campo de trigo
Para te guardar o T
Escolhi o arrojo de Ulisses
Para te guardar o U
E a passarola de Gusmão
Para te guardar o G
E a alma de um poeta
Para te guardar o A
Ah, e escolhi o teu fim, Portugal
Para te guardar o L.

Escolhi sonhos e memórias do mar
Mães e pais e filhos para amar
A linha do horizonte
E a travessia de uma ponte.

Queria ver-te navegar mais livre
Nesse mar que te arrasta
E te devolve mais forte
Que te garante a vida
Desfigura e afronta a morte.

Olha, Portugal, não é por mal:
Vai-te! Quero ver-te partir!
Proscrito refarás este mapa
Onde uma memória de domínio
Há muito te mata.
É chão prescrito,
É fonte que secou!
E um mundo novo te escapa.

Não deixes, Portugal!
Tira-te dessa incómoda carraça
Não vais lá de caravela, de bravura insana
Fé inabalável ou apelo à raça.
Vai-te Portugal, faz-te à vida!
À vidinha, sim senhor!
Leva a ciência, a tecnologia, a mão-de-obra barata
Os artistas e os doutores de gravata,
Uma rima básica, o que for!
Mas não te fiques, Portugal
Que esta terra que sonhaste não ata nem desata:
Mata. E alimenta-te de rancores.
Já sabes que é assim:
Uma pátria constrói-se de suor, lágrimas
E o raio da saudade que te parta!
Não te fiques, Portugal,
Eu quero ver-te partir feito em lágrimas
Eu quero ver-te chegar
Quero que regresses desse infinito mar, Portugal.

Trago-te guardado dentro das palavras
Que (ainda) recordo como nossas.
Vem, Portugal, vem logo que possas,
Não é pela saudade
(Que disso não há quem nos cure)
É que tenho as unhas grandes
Dava-me jeito uma manicure.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

As pessoas mais feias do mundo.



Eu não gosto de políticos e desengane-se quem julga concordar comigo por não lhes sobrarem motivos válidos para essa antipatia. Estou convencida que o maior motivo para o meu desagrado com os políticos se prende com a aparência. Redunda este raciocínio na seguinte intolerância: eu não gosto de políticos porque eles são feios. É só isto. Não se pense que há mais do que isto. Vivemos numa sociedade em que pensar acima disto é retroceder à espécie de Neandertal (ou assim), e eu sou, em larga medida, sapiens-sapiens.
Para que não julguem que isto é um devaneio, resultante do austero período que atravessamos, apresento-lhes a título de exemplo, um caso da minha intimidade: Havia na minha adolescência um rapaz muito giro a quem uma vez, à custa de tanto provocar proximidade, ouvi o seguinte: “um dia, serei Presidente da Câmara”. Na minha cabeça, esse rapaz passou de bestial a besta antes mesmo de pronunciar a palavra “Câmara”. Os seus olhos, onde antes distinguia apenas a cor paixão, ficaram subitamente enturvados de mate; o porte, que sempre me parecera distinto e elegante, começou um prolongado entorpecimento a partir das mãos, e onde antes se formavam sorrisos, apareceram, desde essa fatídica sentença, dentes amarelos, encavalitados uns nos outros, pendendo abusivamente por cima da mandíbula. O príncipe da minha adolescência metamorfoseara-se no mais abominável dos sapos com dentes, apenas e só por ter demonstrado uma certa inclinação para cargos políticos.
Portanto, fica provada a longevidade da minha repulsa por sujeitos políticos e fica também a descoberto uma grande mancha na minha conduta: o preconceito de imagem. Felizmente, ninguém me pode acusar de segregar minorias, porque esta espécie tem vindo a propagar-se em tão larga escala, que suportá-los é algo que fica muito acima das nossas possibilidades.
 Longe vão os tempos em que o presidente da junta era o merceeiro, que ganhava eleições distribuindo folhas de bacalhau pelo Natal, e a isso ninguém chamava suborno nem caridade, chamava-se “jeitinho”. Agora, na mesma quadra, passam pelas casas à cata de grelos e ainda pedem marmita, dizendo que é um esforço necessário para um bem comum. É comum, sim senhora, é cada vez mais comum e esse é o maior problema: a coisa normalizou-se e nós já não nos importamos: damos os grelos, a marmita e ainda lhes guardamos roupa velha para o dia seguinte.
Se ao menos isto se passasse numa terra de políticos bonitos… Mas os políticos são, de longe, as pessoas mais feias do mundo. 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Verbum


Nos primeiros anos de vida, as palavras acontecem como uma coleção de troféus, não nossa, mas dos adultos que nos rodeiam. Não sei qual foi a minha primeira palavra e acho que os meus pais também não. Quando se é o quarto filho de um casal, julgo que o encanto que isso possa ter é coisa de somenos. Se conseguissem imaginar a importância que isto viria a ter para mim, talvez os meus pais tivessem guardado, nas paredes da nossa casa, os meus primeiros sarrabiscos de insultos à ortografia e torpes acrescentos ao português.
Mas não: bastava ser primavera para que as paredes  espelhos estilhaçados da minha rebeldia   fossem limpas, substituindo-se a luminosidade do interior de cada palavra escrita, por umas valentes pinceladas de tinta. Foi assim que se apagou o meu nome das primeiras vezes: a tinta apagava-se com tinta e o fenómeno parecia conter apenas o tamanho das mãos que compunham e ocultavam palavras.
O processo de anulação constante do trabalho realizado pelas minhas mãos duraria até ao ponto preciso em que entendi que as palavras nascem do silêncio das mãos. As mãos silenciosas são lanternas acesas, que se deslocam à frente do pensamento e que conduzem aos sonhos a que damos voz. A palavra “palavra” não fala: diz como pulsa o centro do mundo – o nosso interior – e gravitando sobre si própria acumula os milhões de tentáculos que lhe garantem a locomoção: o significado, quer dizer, o significar, porque palavra é verbo e saber que o é. É saber agir e saber estar.
Nas paredes de uma casa ou de um muro manchado com impropérios, ou de um cartaz levantado ao alto em dia de revolução, ou dos lábios cerrados de um mudo, ou da ignorância sobre as minhas primeiras palavras, até que a boca se canse e as mãos falem, há de figurar uma e outra vez, a sombra nítida do meu nome apagado: rebelião.