quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Uma data de coisas



Viagem curta

Sair de casa começa a ser uma extravagância minha. A última vez que saí, apanhei um comboio ao fim da manhã, onde, de pé, portadora dos mais recentes dissabores da idade: as dores na lombar (cruzes canhoto!), segui viagem acompanhada por um belo livrinho. O comboio estava cheio de gente, jovens essencialmente. Numa viagem que dura mais do que uma hora, eu era a única pessoa a ler.
 Angustiou-me, isto.

Passeio rápido

Fui ver uma exposição de dinossauros, perfeitamente por acaso. Andava à procura de uma casa-de-banho e entrei num museu. Vou continuar sem saber dizer os nomes dos dinossauros, mas fiquei contente por já se encontrarem museus por perfeito acaso. Quando saí, vi um mendigo a escarafunchar no lixo.
Angustiou-me, aquilo.

O ticket

Fui pagar uma quantia obscena de propinas a um instituto superior. Quando cheguei à tesouraria, havia muita gente, mas não havia propriamente uma fila organizada. Deixei-me ficar por uns instantes, até perceber que algures haveria uma daquelas geringonças que cospem senhas de atendimento. Perguntei a uma pessoa ao meu lado (aluno da instituição, certamente) que me respondeu: “yahh, mana, tens que ir ali ao fundo tirar o ticket.”
Hummm… Não sei bem o que me fez isto.


Transbordo

Depois de uma série de peripécias com o funcionamento do metro do Porto, que deve ser o menos intuitivo do mundo e o mais burguês também (talvez uma característica seja consequência da outra), lá consegui orientar-me no caminho de volta. Estava à espera do metro para a Póvoa do Varzim, só porque sim, quando me deparei com os dois adolescentes do outro lado da linha. Não sou perita em tribos urbanas (acho este conceito absolutamente estapafúrdio), mas tenho umas luzes sobre comportamento humano e devo dizer que criaturas daquela idade, que não alinham uma frase sem perturbar a gramática e que escarram para o chão a cada 20 segundos, não são merecedoras do gozo que estariam a ter a fumar aquela… cena.
Perturba-me, isto!

Viagem de regresso

Todo este dia foi acompanhado (salvo seja) por Mário de Carvalho, que se fosse um tipo ali do Porto escreveria comó caralho, assim escreve “apenas” impressionantemente bem, bela e cronicamente. Adestrou-me todo o dia e não se esquiva ao rótulo do melhor prosador da língua portuguesa vivo, «isto, claro, salvo erro ou omissão, melhor opinião e com a devida vénia.»
Agradou-me, isto.

Viagem por decreto

E por Mário de Carvalho: sei que não foi por decreto que, no preciso ano em que eu nasci, saiu do país. 40 anos depois, cá estou eu obrigada a fazer o mesmo, pelos motivos que todos conhecemos sobejamente. Emigro por decreto, portanto, e talvez tão contrariada como o Mário de Carvalho há 40 anos. Espero regressar em Abril. Levo sobre ele a vantagem de reconhecer, no calendário, o sinónimo de liberdade. Talvez preferisse que ela não saísse da rua, nem dos nossos corações nem dos dicionários, de onde Mário de Carvalho, esse resgatador de vocábulos, a pudesse recuperar para sempre.
Algo aqui me preocupa e outro tanto me entristece. Mas ainda espero…


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A espessura dos 40

Até já há o que contar, até já há o que esquecer, até já há o que                                                                                                   [lembrar].
Até já se foi palavra-corpo, palavra-bala, palavra-escudo
Brilho, sonho, astúcia, estupidez … Tudo!
E leram-se livros, ouviram-se discos, fizeram-se ícones e os melhores amigos!
Até já se foi cão, até já se foi cabra, sim, até já se foi bicho, até já se                                                                                           [foi bicha].
Até já se foi pai, até já se foi mãe, até já se foi filho e neto.
Até já se foi casa, grandes alicerces
Até já se foi chão, até já se foi tecto.
Até já se tem rugas, cãs e maleitas. Tem-se um ror de coisas feitas!
Aos 40 a gente aguenta
Mas até já se ganhou, até já se perdeu, até já se sofreu,
Até já se morreu.

E volta-se ao centro, como num jogo de bola
E vai e vira e gira e volta,
Roleta russa, sem revólver, com pistola

Ainda há o que contar, ainda há o que esquecer, ainda há o que                                                                                                   [lembrar]
Ainda há espessura, lustro, inteligência, bastante estupidez
                                                                 [que se chama insensatez]
Ainda há livros para ler, autores para citar - até já se pode escrever!
Ainda se é animal, lobo ou loba - essa espécie fatal!
Ainda se é pai e mãe e filho, vislumbram-se netos e um andarilho
Ainda há coisas feias, pedras nas mãos e telhados de vidro.
Ainda vêm mais rugas, cãs e maleitas, (quem sabe) carinho...
E tudo juntinho, contas bem-feitas:
Aos 40 há gente que assenta
Mas ainda há que ganhar, ainda há que perder, ainda há que sofrer,
Ainda há que viver…


Até já!

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Da vergonha e outros sentimentos coletivos


Não raras vezes, sinto vergonha por atitudes alheias: é o escarro no chão, é o trapaceiro na fila de trânsito, nos correios, nas repartições públicas, ou onde for; é o comentário despropositado, é a ironia perdida, é o literalismo cego, é o piropo bronco, é o “saloiísmo” agudo, é o pseudo-intelectualismo grave, é a falta de escrúpulos, é o avolumar e o aplauso massivo da vulgaridade, é a falta de vergonha na cara, é essencialmente, a falta de cara, de rosto, de bom gosto, de bom-tom, de bom-senso!
Os últimos labirintos excrescentes dos nossos representantes institucionais enchem-me de vergonha.
Tem-se extrapolado demasiado sobre a ameaça que representa a falta de sentido  democrático desses atores do vazio,  dos perigos da Europa a duas bitolas, da galvanização do poder da Alemanha sobre a Europa do sul. Fala-se muito de tudo, na verdade. Fala-se tanto, que nos esquecemos dos imensos silêncios incómodos de quem tem que forçosamente calar. 
Não se fala da vergonha porque a vergonha não se põe em textos, nem em imagens, nem nas bocas dos pleonásticos comentadores políticos, que não sabem o que isso é. E não se percebe globalmente que a vergonha é aquilo que se armazena na antecâmara do medo, esse glutão. 
Eu tenho vergonha da (boa?) reação dos mercados à política de continuidade do nada, do psi 20 em alta, dos indicadores macroeconómicos espremidos e organizados em trimestres, das contrações e rebentamentos d' água da zona Euro.

Eu tenho vergonha por esta gente que me representa, que faz que age, que faz que faz. Eu tenho vergonha na cara e apetece-me escarrá-la na cara deles. Eu tenho vergonha de ter vergonha e de vir a saber o que é o medo.

sábado, 15 de junho de 2013

A um ministro

Sr. Nuno Crato, o senhor parece-me um ressabiado. Terá lá o seu valor, terá estudado as suas matérias muito bem estudadas, terá feito isso à custa da palmatória, ter-lhe-ão exigido demasiado na infância e adolescência, terá comido o pão que o diabo amassou para chegar a “doutor”(espero bem que sim!), mas isso não lhe dá o direito de se vingar numa geração inteira!
De si, sei - por o ouvir dizer - que foi aluno do digníssimo professor Rómulo de Carvalho, e que isso terá sido uma benesse na sua aparentemente (até 2011) notável carreira. Mas logo aí se percebe a sua falta de sensibilidade: caramba, homem, não custava nada e punha-se a beneficiar também um pouco da sabedoria do António Gedeão, que isso não haveria de importunar o Rómulo! O maior mistério, para mim, é se terá optado por não o fazer, ou se tinha - já à altura - essa dificuldadezinha macabra da tortura (auto-tortura, também), essa teimosia, que insiste em confundir com determinação, essas olheiras de quem vive no ar a interpretar os corpos celestes, sem saber que é necessário misturar o ar e a terra para que a interpretação seja justa. Deixe-se de suspensões, Sr. Nuno Crato! Desça à terra para umas boas horas de sono e sonho (que o sonho comanda a vida, como deveria ter aprendido, se fosse esperto, se tivesse algum sentido de oportunidade e bom-senso), vai ver que a terra arrasta para si a força do pensamento e quem sabe o seu jeito para isso, malgrado as aparências, não se tenha esfumado por completo.
Vá lá, homem, digne-se a convocar em si alguma noção de respeito, se não for por outra razão, que seja pela ideia de que, pelo menos, o seu velho professor se possa orgulhar de si. E Olhe que o senhor parece não saber disto, mas um professor cheio de orgulho e feliz, é a maior garantia de qualidade de educação. É, é, Sr. Ministro, é...

Deixe-se de coisas, sim?!

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Eis um erro: A humanidade.


Leio o jornal, ou ponho o corpo à varanda, ou procuro o vento entre o cabelo revolto, ou perco a calma e praguejo sem motivo aparente, ou oiço a exaustão de vozes oprimidas, ou a exaustão das ondas na areia, ou sou a rouquidão dos dias exaustos, ou tropeço em pedras (essas sei que existem!), ou quero ser pedra de tanto ver gente, tanta gente sem saber que é pedra, tanto engano, tanto erro  – esse erro de que sou tantas partes…
 De todas as aprendizagens que fiz – e depois de tudo contado, verifico que me sobram dedos, embora isso não queira dizer que é pouco ou muito – aquela que prevalece acima de todas, que se destaca de qualquer pensamento, ou coisa de matéria ou de paixão é esta: a humanidade é um erro. Não é coisa boa nem má, não é longe nem perto, nem espaçosa, nem estreita, nem bela nem feia. Nem nada. Nem nem, que a alternativa ao nada é o vazio. É um erro! É um erro, a existência. É um erro, o ser. E é um logro a consciência do ser. Ou serão conscientes os calhaus?
A humanidade cuja missão suprema era a vida, morreu ao querer mais que viver.
Eu fui sempre pela vida e morri-me também. Vivo como um erro, como todos, cuidando que vivemos apenas com os nossos erros reconhecidos e apagados, ao lado dos erros dos outros.
Talvez deixe de ler jornais e ouvir relatos do mundo. Vou penhorar as horas vagas e lambuzar-me numa cuba de vinho.

Ou eu muito me engano ou, se arrependimento mata, Deus algum nos governa.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Clarice por mim

Olá, olá!
Sei que não tenho tido uma palavra de conforto para convosco e que isso não se faz. Por isso, deixo aqui uma perninha de uma coisa, que é quase um corpo. Isto (s)em jeito de desculpa.
A voz é minha, o pensamento da Clarice Lispector e as palavras... Bem, as palavras são de todos.
Há aqui e além atrapalhações, mas tendo em vista a escuridão do cubículo onde me encontrava... Acho que passa:).
Governem-se bem, que ninguém o fará por nós!

http://www.youtube.com/watch?v=S0xKNDI2B_0


terça-feira, 2 de abril de 2013

Faltam 30 dias para a estreia: "um sonho de outono", de Jon Fosse


De hoje a exatamente um mês tenho uma estreia. Falo disto não como se fosse uma personagem ou um alter-ego, a enunciação de um delírio, ou a construção sarcástica de uma opinião, como tenho tantas vezes feito neste blogue. Falo disto porque é real e porque quero que saibam, que apesar de a crise não exercitar minimamente a criatividade (nem na cozinha, como li outro dia da voz do Gonçalo Waddington) e de nos estar a privar de quase tudo (a mim muito particularmente), ainda há duas coisas que vão resistindo, sem grande estoicismo, diga-se: o amor e a arte.
Agora que falo nisso, lembro-me que talvez uma coisa não exista sem a outra. Sem querer ser prolixa, mas já sendo, vou clarificar esta ideia: não há arte sem amor, assim como não há amor sem arte. Não estou para discutir o que é uma coisa ou outra: todos entendemos a sua irritante incompreensão e todos aceitamos a sua existência. E claro que quando digo todos refiro-me a um número cada vez mais reduzido de gente, com uma louvável permeabilidade a alguma beleza.
Sim, de hoje a um mês tenho uma estreia. Eu e mais “meia dúzia de líricos”, que insistem neste país, que ainda não desistiram de aqui fazerem gente: a Alcinda que vem dos Arcos de Valdevez (de onde eu sou e ela não), O Sérgio que vem da Póvoa do Lanhoso, de onde poderia vir de transportes públicos, se os houvesse neste país; A Sameiro, a quem os dias nunca sobram, mas que é gente de sobra para os dias; o Fidalgo, que há uma vida que saiu do Alentejo e que aqui vive com a mesma parcimónia com que, seguramente, o faria lá; O Luís, para mim um privilegiado, porque pode veicular a sua arte e o seu amor (pela arte) em terreno talvez ainda fértil, porque ensina, porque transmite e porque (estou muito segura disto!) é capaz de o fazer soberbamente. E o Braga, que é de Braga e tem a particularidade de não gostar de teatro - e a lata de o dizer- enquanto prepara as luzes; O Paulo a dar-nos música com tanta humildade e um entendimento maior… E o Afonso, que sabe que o teatro é a maior arte do mundo e sabe-o com muita alegria e muitos medos e tanta dor!
De hoje a um mês todos temos uma estreia. Gosto de repetir isto. Gostava muito que o país onde vivo percebesse a alegria que isto é, sentisse a alegria que isto é, sentisse que isto existe, que isto é verdade, é autenticidade, que isto é ser-se humano, que isto é teatro. Se não fosse o país inteiro, gostava que pelo menos os amigos percebessem isto. Os amigos que, exatamente, de hoje a um mês inventarão mil desculpas para não irem à estreia, desculpas que lhes darão mais trabalho do que estar lá… Que se amanhem todos nas suas prioridades! - Continuarão a ser meus amigos, por isso é meu dever avisar-lhes: olhem que de hoje a um mês é dia de estreia! (E eu não volto a avisar).

quinta-feira, 7 de março de 2013

Primeiro, a mulher


Sempre que digo mulher, penso: mãe. Mas nem sempre que digo mãe, penso mulher. Este pensamento é cru, tão cru que custa a roer. Mas, ao contrário do que somos levados a acreditar, não é natural: é fruto da educação.
 Nenhuma mulher é completa, se não for mãe: Esta espécie de premissa foi-me entrando pelos anos dentro como uma acusação. E julgo que uma boa parte de mim a assumiu como lei, uma parte inteligente (felizmente), certamente a mesma parte que me diz que sou mulher e sou inteira, apesar de não ser mãe. Tudo é laboriosamente posto a germinar no mesmo espaço, um espaço a que vamos pertencendo com maior ou menor convicção. Este espaço que me obriga a ser mãe para ser mulher é o mesmo que me obriga a emigrar para ter pão, o mesmo que não acha compatível ser-se de uma aldeia do Minho e escritora (como já me foi dito), o mesmo que me pune por exercer o livre-arbítrio e não acompanhar modas, nem politiquices, nem lobbies, nem coisa nenhuma que se imponha ou insinue perante mim com o odor da perversão.
Não sou mãe, sou mulher.
Falta-me, portanto, o privilégio de dar ao mundo um ser único e de lhe dar os retoques que me apetecer na sua personalidade, na sua singularidade. Não me faltam as angústias e os medos, as frustrações e a ansiedade, a alegria ou o desespero e o amor de qualquer mãe. A mãe é um ser maravilhoso. É sim, senhora, confirma-o a minha própria mãe, mas isso é porque a minha mãe é, por acaso, uma mulher extraordinária. Por isso, o que eu tenho é a honra de testemunhar a existência de uma mulher maravilhosa, que por acaso é minha mãe. É a mulher que a minha mãe é que a torna especial e não a mãe que torna a mulher especial, por muito que a maternidade tenha o poder de transformar - e acredito que sim - ninguém fica com a personalidade favorecida por ser mãe.
A apologia das mães como um ser supremo dentro da humanidade sempre me causou uma certa espécie. Sempre me pareceu uma forma generalizadamente preguiçosa e desinspirada de elogiar o feminino. E mesmo que este seja o grande porta-estandarte do universo feminino, eu tenho para mim que as mães, todas as mães, quando se esquecem de ser mulheres para serem apenas mães são infinitamente chatas, desinteressantes, despersonalizadas e seguramente muito incompletas.
Pode isto parecer um manifesto anti mamã, mas não, não é. Pelo contrário: isto é um elogio à mulher, à sua beleza e forma, à sagacidade e inteligência, ao seu voluntarismo e capacidade de realizar tarefas múltiplas, ao seu altruísmo e atenção dispersa, e a todos os lugares-comuns que se lhe possam associar, antes e depois de ser mãe, ou sem nunca o ter sido. O que eu acredito é que para que a mãe não seja uma qualquer, é preciso respeitar, primeiro, a mulher.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O tamanho das mãos



Em cada linha que escrevo
A cada pensamento acabado
Por  cada verso que rima
Em cada palavra que trago
Minto.
(Que bem que o fiz ainda agora)
Sentir, vou sentindo
Mas ao buscar ideias para dizer o que sinto
Minto.

Todas as ideias são feias
Quando se põem a sentir
Todos os sentimentos
Quando se põem com ideias
Não fazem senão mentir.

Por isso, minto:
Cai-me suor das mãos para as teclas
Por onde mentiras escorrem secretas
Disponho em linhas tudo o que sinto
E essas linhas com que me coso
É que escondem verdades minhas.

Na verdade, minto:
Pouso sobre o que sinto
O tamanho das mãos
Cuja sombra revela a escrita
- Desdita tamanha! Pobres garras!-
E nunca minto sobre o que sinto.

Minto. É verdade.
Se mentir assim é pecado
Não posso mais que render-me a este fado:
Quando Caronte colher as moedas
Que sobre os meus olhos ireis colocar
Dir-lhe-ei, ali, sobre as turvas águas
Sem medos, rancores ou mágoas:
Que deus não me perdoe!